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A Imagem Pessoal - A Construção do Eu.

No texto "O Estranho" (Das Unheimlich), Freud relata o episódio em que, viajando de trem, no compartimento carro-leito, um solavanco fez a porta do toalete abrir-se e "um senhor de idade, de roupão e boné de viagem, entrou." Levantou-se para mostrar o equívoco deste homem e, então, compreendeu, espantado, que o intruso era seu reflexo no espelho da porta aberta. Tomado de forte emoção, confessa que antipatizou com sua aparência, ficou assustado com seu "duplo" que achou "estranho".

Neste relato, Freud não especifica a data e o local do ocorrido, ao contrário do que sempre faz. O texto foi elaborado e publicado em 1919, à mesma época do "Mais Além do Princípio do Prazer". Portanto, o fato deve ter ocorrido quando contava cerca de sessenta anos (1856-1919).

Percebe-se nesta narrativa a mesma estranheza do gêmeo univitelino que ficara em casa doente enquanto o irmão gêmeo fora para escola. O irmão, que havia ficado em casa, ao deparar-se com seu reflexo no espelho, identifica o irmão, o chama, e estranha a não resposta do suposto irmão.

A construção do Eu perpassa, por assim dizer, pela identificação do ser desde o seu desenvolvimento no ventre materno. Segundo Winnicott, "no desenvolvimento emocional individual, o precursor do espelho é o rosto da mãe." O inacabado ser humano quando vem ao mundo se confunde com este. Ainda não tem definido o que é o seu corpo, o que ele é, o que é o outro, o que é o mundo que o cerca. A mãe (ou a pessoa que cuida dele), os objetos, faz parte dele mesmo. Ainda não tem noção de seu próprio corpo – por exemplo: a mão ou o pé são descobertos como exteriores a ele, por isso é comum morder seu pé e chorar de dor.

Ao sugar o seio, mais do que olhar para este, o bebê olha para o rosto de quem o está amamentando. E, como afirma Winnicott, quando olha para o rosto da mãe, "o que o bebê vê é ele mesmo." Progressivamente, o bebê percebe que, quando olha, o que vê é o rosto da mãe. A mãe devolve a ele seu próprio eu, e ele vai-se tornando "menos dependente de obter de volta o eu dos rostos da mãe e do pai."

A relação da mãe com seu próprio corpo, e sobretudo com seu corpo durante a gravidez, será fundamental para a constituição do eu e da subjetividade. O vínculo entre mãe e filho se estabelece desde o instante da concepção, e a futura mãe atribui a seu filho um corpo imaginado, diferente do que é o feto no plano fisiológico da realidade. Tal corpo imaginado do filho, de acordo com Waelhens, vai oferecer ao desejo da mãe um correlato, um suporte, um objeto; serve de proteção contra o parto vivido como um luto (perda de parte de seu próprio corpo e ameaça contra sua vida). (Freud -Além do princípio do prazer: entre pulsões, vida e morte).

Waelhens, a partir de Piera Aulagnier "... entre a necessidade (sede, fome) e a demanda (tentativa de restabelecer a fusão original, de eliminar a incompletude), ou entre o instinto e a pulsão, vão-se estabelecendo os traços primários do eu e do futuro sujeito desejante."

O começo de vida é, portanto, alienante: alienado no desejo dos pais, principalmente da mãe, presa da unidade-dual (mãe-filho), presa de suas próprias limitações (inacabamento fisiológico), e inserido em uma cadeia significante que pré-existe a seu nascimento. Por conseguinte, é necessário da parte da mãe "um investimento libidinal do corpo do filho, enquanto corpo de outro ser distinto do corpo materno", uma vez que não bastam as sensações corporais, tais como tato, visão, órgãos internos, dor, sinestesia etc., para que se constitua um eu, que de início é corporal.

Freud já percebera a importância da mãe (ou substituto) ao escrever que "o eu é a parte do isso modificado pela influência direta do mundo externo.

A criança em frente do espelho

O primeiro esboço do eu será constituído a partir do sexto mês, quando a criança começa a demarcar a totalidade do seu corpo. Este é um longo processo (sexto ao 18° mês), que se caracteriza sobretudo pela imagem no espelho.

Wallon, neurologista francês, um dos fundadores da Psicomotricidade, foi o primeiro autor a falar em estágio do espelho (1934). Lacan (1949) desenvolveu sua idéia, acrescentando-lhe uma visão psicanalítica. Aos dois estudiosos, impressionava-lhes o fato de, antes do desenvolvimento psicomotor, ou seja, ainda imatura e dependente (não anda nem fala), a criança começar a formar uma imagem conjunta de seu corpo. Antes mesmo de nomear seu corpo ou nomear-se, a criança já se reconhece no espelho. Até então, o bebê percebia seus pés, mãos, braços, pernas, até mesmo seu tronco, mas só quando se olha no espelho pode ver seu rosto. Não se trata mais do rosto da mãe, mas de seu próprio rosto.

E não somente isso, mas também possuir uma identidade própria, ainda que "inconsciente", do nome com o qual é chamado, a partir do 4º e 5⁰ mês¹, onde pode causar transtornos em crianças enquanto ser, se não forem respeitadas na formação do eu próprio.

Ao olhar-se no espelho, o que (ou quem), a criança vê num primeiro momento é um outro; em um segundo tempo percebe que é ela mesma que está ali. Ou seja, vê primeiro o outro, depois o outro que é ela mesma, criando assim um jogo de alternância.

Portanto, a imagem do corpo é específica a cada indivíduo, e está ligado ao sujeito e à sua história. Em se tratando do sujeito que não mais se identifica a ponto de achar-se estranho " Unheimlich ", palavra usada por Freud, onde no idioma português é de difícil tradução, Estranho Familiar nos traz, na compreensão de Dolto essa especificidade histórica do sujeito de cada um.

Referências

WINNICOTT. D.W. O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil (1967). In O brincar e a realidade, cap.9. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

WAELHENS, A. de. La psicosis – ensayos de interpretación analítica y existencial. Madrid: Morata, 1973.

LACAN, Jacques. Algumas reflexões sobre o eu (1951). In Psilacánise: Algumas reflexões sobre o espelho, por Jacques Lacan. n.2. São Paulo: Clínica Freudiana, 1985.

FREUD, Sigmund. O estranho (1919). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, v.17. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

Investigação do reconhecimento do próprio nome em bebês de 4 a 5 meses: estudo piloto https://doi.org/10.1590/S1516-18462013000500004

WALLON, Henri. As origens do caráter na criança (1929-31). São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971.