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espelho e o carater

 

No começo estava o corpo, bem como no fim ele estará. Nascemos como corpo biológico e assim morreremos. De fato, quando alguém morre, surge a pergunta: onde está o corpo?(e não onde está Fulano?). Entre estes dois extremos – o nascimento e a morte – há um longo trajeto que todo ser humano deve percorrer, a fim de, além de ser corpo, constituir um eu. Nesta constituição existe um "processo de desenvolvimento que, se não pode ser demonstrado, pode ser construído."1 "O eu", no entanto, afirma Freud, "é, primeiro e acima de tudo, um eu corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é ele próprio a projeção de uma superfície."2

Como é sabido, de início, o recém-nascido não distingue os limites de seu próprio corpo; as sensações internas e externas se confundem. Progressivamente, ele vai definindo a superfície de seu corpo, seu interior, o que é parte dele e o que pertence ao mundo externo, construindo assim seu esquema e sua imagem corporal. Nesta construção progressiva, seu eu vai ser constituído, sempre num processo que, por ser dialético, implica dois opostos: ele próprio e o outro.

O eu corporal, por sua vez, é constituído por aquela parte que se diferenciou do isso: pulsões parciais dirigidas inicialmente para o próprio corpo (auto-eróticas), antecedendo o eu propriamente dito, que depois se tornam narcísicas (dirigidas para o próprio eu). Freud afirma que o eu é a parte do isso que foi modificada pela influência externa, e que a percepção desempenha para o eu, o mesmo papel que a pulsão desempenha para o isso. Os dois não estão, todavia, nitidamente separados; subjaz no eu uma parte "desconhecida e inconsciente", de algum modo "preservada e que pode ser trazida de novo à luz", ou seja, que pode retornar.3

Já o corpo, e acima de tudo sua superfície, constitui um lugar de onde se originam as sensações externas e internas: tato, sons, sensações intero e proprioceptivas, sensações de dor, que vão informar sobre os órgãos internos. Contudo, cabe à visão um papel especial. É sobretudo o olhar que torna possível conhecer o outro e se conhecer, definir o contorno das várias partes do corpo, e só através do olhar no espelho é que se pode conhecer o próprio rosto. É efetivamente através do olhar que se cria a imagem de si; imagem especular, criada a partir do ato de olhar a si próprio no espelho, de olhar para o outro, do olhar do outro. Toda imagem é por si mesma enganosa, fugaz, fugidia, ilusória. Além disso, tanto nossa visão de nós mesmos – nossa imagem – como nossa visão do mundo refletem nosso ponto de vista, nosso estar no mundo.

Convém lembrar também que, na constituição do eu, ao lado da diferenciação do isso, é de suma importância o papel das identificações. Estas, na fase oral primitiva, não se distinguem dos investimentos objetais, além de serem as mais gerais e duradouras. Um objeto perdido instala-se novamente no eu, sendo o investimento substituído pela identificação (p.ex. na melancolia). Assim, o eu é também um "precipitado de investimentos objetais abandonados e contém a história dessas escolhas de objeto."4

Este texto procura elaborar o papel do corpo na constituição do eu, tomando como referência três momentos na história individual e na história da psicanálise:

1. O reconhecimento de si no rosto da mãe
2. A criança em frente do espelho
3. Freud diante do espelho