Uma reinterpretação radical da obra de Sigmund Freud
Citação de Lenilton Costa em junho 14, 2025, 4:15 pmA psicanálise lacaniana, uma reinterpretação radical da obra de Sigmund Freud, oferece uma perspectiva singular sobre a constituição do aparelho psíquico, com a teoria do espelho servindo como um de seus pilares conceituais mais distintivos e fundamentais. Jacques Lacan (1901-1981) propôs que a formação do eu (Ego) não é um processo inato ou linear, mas um evento crucial de identificação imaginária que molda a estrutura psíquica do sujeito de forma indelével.
O Estágio do Espelho: Gênese do Eu Alienado
O estágio do espelho, descrito por Lacan em seus primeiros trabalhos, especialmente no artigo "O Estádio do Espelho como formador da função do Eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica" (LACAN, 1949/1998a), refere-se a um período no desenvolvimento do bebê humano (geralmente entre os seis e dezoito meses de idade) no qual ele adquire a capacidade de reconhecer sua própria imagem em um espelho. Esse reconhecimento, no entanto, não é meramente cognitivo, mas profundamente psíquico.
Antes desse estágio, o bebê experiencia seu corpo como uma "colagem" de sensações fragmentadas e desorganizadas. Ele não possui uma percepção de si como uma totalidade unificada. A imagem no espelho, ou a imagem do outro semelhante (como um irmão ou colega), oferece-lhe uma forma totalizante de si. É nesse momento que ocorre uma identificação jubilosa: o bebê, em sua descoordenação motora, vê uma imagem coesa e dominadora que se projeta como seu ideal. Lacan descreve essa identificação como a "matriz simbólica em que o eu (je) se precipita em uma forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro" (LACAN, 1949/1998a, p. 97).
Essa identificação com uma imagem externa é, paradoxalmente, a base da alienação constitutiva do eu. O Ego, para Lacan, não é uma instância autônoma e unificada, mas uma construção imaginária, uma forma precipitada de si que é, desde o início, um reflexo do Outro. O "eu" (moi) que se forma nesse momento é fundamentalmente ilusório, pois se baseia em uma imagem que é completa e perfeita, contrastando com a fragmentação interna real do sujeito.
As Três Ordens: Imaginário, Simbólico e Real
A teoria do espelho é a porta de entrada para a compreensão das três ordens lacanianas que estruturam o aparelho psíquico:
- O Imaginário: É a ordem das imagens, das identificações especulares e das relações duais (eu-outro, eu-imagem). O estágio do espelho é o protótipo do Imaginário, onde o sujeito se captura na ilusão da totalidade e da completude oferecida pela imagem. É aqui que se constitui o eu ideal (formado pela identificação com a imagem corporal unificada) e o ideal do eu (a imagem do sujeito como ele gostaria de ser visto pelo Outro). A agressividade e a rivalidade também têm suas raízes no Imaginário, na medida em que o outro semelhante é percebido como um rival por essa imagem ideal.
- O Simbólico: Esta é a ordem da linguagem, da lei, da cultura e do Grande Outro. A intervenção de uma terceira parte (tipicamente a função paterna, ou o "Nome-do-Pai") é crucial para que o sujeito não fique preso na relação dual do Imaginário. O Simbólico permite que o sujeito se organize no mundo da linguagem e das regras sociais, conferindo sentido às experiências e às relações. É através da linguagem que o sujeito pode articular sua falta-a-ser, sua incompletude, e entrar na cadeia do desejo. Para Lacan, o inconsciente é estruturado como uma linguagem, operando sob as leis do Simbólico.
- O Real: É a ordem do que resiste à simbolização e à imaginação. O Real é o impossível de ser apreendido pela linguagem ou pela imagem. É o trauma, a angústia fundamental, a dimensão da existência que não pode ser totalmente simbolizada ou integrada. Lacan (1975-1976/2007) refere-se ao Real como aquilo que "não cessa de não se escrever". Embora não diretamente acessível, o Real pontua constantemente o Imaginário e o Simbólico, manifestando-se como lapsos, sintomas e o inarticulável.
A Constituição do Sujeito e a Psicanálise
A partir da teoria do espelho, o aparelho psíquico lacaniano é concebido como fundamentalmente dividido (fendido). O sujeito não é um ser unificado e coerente, mas um sujeito barrado (S), constantemente em busca de uma totalidade que é ilusória, prometida pelo Imaginário, mas mediada e, ao mesmo tempo, negada pelo Simbólico, e confrontada pelo Real.
A psicanálise, nesse contexto, não busca "curar" ou "unificar" o sujeito, mas sim ajudá-lo a reconhecer e lidar com essa divisão constitutiva. O trabalho analítico visa desvelar as identificações imaginárias que sustentam o Ego e os impasses simbólicos que mantêm o sujeito em sofrimento, permitindo uma nova relação com seu desejo e sua falta. A teoria do espelho, ao demarcar a gênese dessa alienação, oferece uma lente essencial para compreender a complexidade do aparelho psíquico e a perene busca humana por reconhecimento e sentido.
Referências Bibliográficas
LACAN, Jacques. O Estádio do Espelho como formador da função do Eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. In: LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998a. p. 96-103. (Texto original de 1949).
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud, 1953-1954. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Betty Milan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998b.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 23: O Sinthoma, 1975-1976. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sergio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
A psicanálise lacaniana, uma reinterpretação radical da obra de Sigmund Freud, oferece uma perspectiva singular sobre a constituição do aparelho psíquico, com a teoria do espelho servindo como um de seus pilares conceituais mais distintivos e fundamentais. Jacques Lacan (1901-1981) propôs que a formação do eu (Ego) não é um processo inato ou linear, mas um evento crucial de identificação imaginária que molda a estrutura psíquica do sujeito de forma indelével.
O Estágio do Espelho: Gênese do Eu Alienado
O estágio do espelho, descrito por Lacan em seus primeiros trabalhos, especialmente no artigo "O Estádio do Espelho como formador da função do Eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica" (LACAN, 1949/1998a), refere-se a um período no desenvolvimento do bebê humano (geralmente entre os seis e dezoito meses de idade) no qual ele adquire a capacidade de reconhecer sua própria imagem em um espelho. Esse reconhecimento, no entanto, não é meramente cognitivo, mas profundamente psíquico.
Antes desse estágio, o bebê experiencia seu corpo como uma "colagem" de sensações fragmentadas e desorganizadas. Ele não possui uma percepção de si como uma totalidade unificada. A imagem no espelho, ou a imagem do outro semelhante (como um irmão ou colega), oferece-lhe uma forma totalizante de si. É nesse momento que ocorre uma identificação jubilosa: o bebê, em sua descoordenação motora, vê uma imagem coesa e dominadora que se projeta como seu ideal. Lacan descreve essa identificação como a "matriz simbólica em que o eu (je) se precipita em uma forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro" (LACAN, 1949/1998a, p. 97).
Essa identificação com uma imagem externa é, paradoxalmente, a base da alienação constitutiva do eu. O Ego, para Lacan, não é uma instância autônoma e unificada, mas uma construção imaginária, uma forma precipitada de si que é, desde o início, um reflexo do Outro. O "eu" (moi) que se forma nesse momento é fundamentalmente ilusório, pois se baseia em uma imagem que é completa e perfeita, contrastando com a fragmentação interna real do sujeito.
As Três Ordens: Imaginário, Simbólico e Real
A teoria do espelho é a porta de entrada para a compreensão das três ordens lacanianas que estruturam o aparelho psíquico:
- O Imaginário: É a ordem das imagens, das identificações especulares e das relações duais (eu-outro, eu-imagem). O estágio do espelho é o protótipo do Imaginário, onde o sujeito se captura na ilusão da totalidade e da completude oferecida pela imagem. É aqui que se constitui o eu ideal (formado pela identificação com a imagem corporal unificada) e o ideal do eu (a imagem do sujeito como ele gostaria de ser visto pelo Outro). A agressividade e a rivalidade também têm suas raízes no Imaginário, na medida em que o outro semelhante é percebido como um rival por essa imagem ideal.
- O Simbólico: Esta é a ordem da linguagem, da lei, da cultura e do Grande Outro. A intervenção de uma terceira parte (tipicamente a função paterna, ou o "Nome-do-Pai") é crucial para que o sujeito não fique preso na relação dual do Imaginário. O Simbólico permite que o sujeito se organize no mundo da linguagem e das regras sociais, conferindo sentido às experiências e às relações. É através da linguagem que o sujeito pode articular sua falta-a-ser, sua incompletude, e entrar na cadeia do desejo. Para Lacan, o inconsciente é estruturado como uma linguagem, operando sob as leis do Simbólico.
- O Real: É a ordem do que resiste à simbolização e à imaginação. O Real é o impossível de ser apreendido pela linguagem ou pela imagem. É o trauma, a angústia fundamental, a dimensão da existência que não pode ser totalmente simbolizada ou integrada. Lacan (1975-1976/2007) refere-se ao Real como aquilo que "não cessa de não se escrever". Embora não diretamente acessível, o Real pontua constantemente o Imaginário e o Simbólico, manifestando-se como lapsos, sintomas e o inarticulável.
A Constituição do Sujeito e a Psicanálise
A partir da teoria do espelho, o aparelho psíquico lacaniano é concebido como fundamentalmente dividido (fendido). O sujeito não é um ser unificado e coerente, mas um sujeito barrado (S), constantemente em busca de uma totalidade que é ilusória, prometida pelo Imaginário, mas mediada e, ao mesmo tempo, negada pelo Simbólico, e confrontada pelo Real.
A psicanálise, nesse contexto, não busca "curar" ou "unificar" o sujeito, mas sim ajudá-lo a reconhecer e lidar com essa divisão constitutiva. O trabalho analítico visa desvelar as identificações imaginárias que sustentam o Ego e os impasses simbólicos que mantêm o sujeito em sofrimento, permitindo uma nova relação com seu desejo e sua falta. A teoria do espelho, ao demarcar a gênese dessa alienação, oferece uma lente essencial para compreender a complexidade do aparelho psíquico e a perene busca humana por reconhecimento e sentido.
Referências Bibliográficas
LACAN, Jacques. O Estádio do Espelho como formador da função do Eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. In: LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998a. p. 96-103. (Texto original de 1949).
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud, 1953-1954. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Betty Milan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998b.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 23: O Sinthoma, 1975-1976. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sergio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
Citação de Abimael Corrêa da Silva em junho 15, 2025, 9:10 pmConcordo, o Estágio do Espelho em Lacan não é apenas um momento de reconhecimento visual, mas um processo fundamental na formação da subjetividade humana, onde a criança constrói uma imagem unificada de si mesmo, embora essa imagem seja inicialmente alienada e idealizada.
Concordo, o Estágio do Espelho em Lacan não é apenas um momento de reconhecimento visual, mas um processo fundamental na formação da subjetividade humana, onde a criança constrói uma imagem unificada de si mesmo, embora essa imagem seja inicialmente alienada e idealizada.