A Relação entre a Compreensão e o Real na Experiência Humana
Citação de Lenilton Costa em junho 23, 2025, 1:45 pmA complexa teia da existência humana é intrinsecamente moldada pela nossa capacidade de compreender o mundo e a nós mesmos. Contudo, essa compreensão está em constante diálogo, e por vezes em tensão, com aquilo que denominamos o real. A relação entre esses dois conceitos tem sido objeto de profunda reflexão na filosofia, na psicanálise e em outras áreas do saber, revelando que o "real" não é uma entidade monolítica e acessível de forma direta, e que a compreensão é um processo dinâmico, influenciado por múltiplas camadas da experiência subjetiva.
O Real como Objeto da Compreensão: Perspectivas Filosóficas
Na filosofia, a questão da compreensão e do real remonta aos primórdios do pensamento ocidental. Historicamente, diversas correntes buscaram determinar como o sujeito cognoscente (aquele que compreende) se relaciona com o objeto de conhecimento (o real).
- Perspectiva Fenomenológica: Para pensadores como Edmund Husserl e Martin Heidegger, a compreensão não é um mero ato intelectual, mas uma forma fundamental de estar-no-mundo. Heidegger (1927/2012), em Ser e Tempo, argumenta que o Dasein (ser-aí, o ser humano) já é sempre um ser-compreendente. A realidade, ou o mundo, é sempre experienciada e interpretada por nós, e nunca como uma entidade totalmente separada ou puramente objetiva. A compreensão, portanto, não é sobre apreender um real pré-dado, mas sobre a própria constituição do sentido em nossa vivência. O real é o mundo que se revela à nossa consciência intencional.
- Perspectiva Epistemológica e Construtivista: Immanuel Kant (1781/2001), em sua Crítica da Razão Pura, já apontava para o fato de que não acessamos as "coisas-em-si" (númeno), mas apenas as "coisas-para-nós" (fenômeno). Nossa compreensão do real é mediada pelas categorias inatas da nossa mente (espaço, tempo, causalidade, etc.). Assim, o real que compreendemos já é, em certa medida, construído por nossas faculdades cognitivas. Essa perspectiva lança as bases para o construtivismo, que argumenta que a realidade que conhecemos é sempre uma construção social e subjetiva, e a compreensão é o processo ativo de elaborar essa construção.
- Perspectiva Hermenêutica: A hermenêutica, especialmente na obra de Hans-Georg Gadamer (1960/2004), enfatiza a compreensão como um ato de interpretação. Não abordamos o real de forma neutra, mas com uma "pré-compreensão" (horizontes de sentido, preconceitos no sentido de pré-juízos) que é moldada pela nossa história e cultura. O real, nesse viés, é o que se desvela na circularidade da interpretação, num diálogo contínuo entre o sujeito e o mundo. A compreensão, portanto, é sempre uma fusão de horizontes, onde o real é aquilo que é compreendido dentro de um determinado contexto interpretativo.
O Real Lacaniano: Para Além da Compreensão Simbólica e Imaginária
Na psicanálise de Jacques Lacan, o conceito de Real adquire uma dimensão particular e crucial, que se distingue da realidade objetiva do senso comum. Para Lacan, o aparelho psíquico se estrutura em três ordens interligadas: o Imaginário, o Simbólico e o Real.
- O Imaginário: É a ordem da imagem, da semelhança, da identificação e da ilusão de completude. O "eu" (moi) se constitui no estágio do espelho a partir de uma imagem unificada que o sujeito apreende de si ou do outro semelhante (LACAN, 1949/1998a). Nessa ordem, o real é percebido e representado através de imagens e projeções.
- O Simbólico: É a ordem da linguagem, da lei, da cultura, do Grande Outro. É através do Simbólico que o sujeito se insere no mundo da fala, dos nomes, das interdições e das significações. Grande parte da nossa compreensão do mundo e de nós mesmos opera no registro simbólico, mediada por palavras e conceitos (LACAN, 1957/1998b).
- O Real: É a ordem do que resiste à simbolização e à imaginação. É aquilo que não pode ser nomeado, representado ou totalmente compreendido pelas palavras ou pelas imagens. É o trauma em sua brutalidade, a angústia pura, a dimensão da existência que escapa à captura da linguagem e da fantasia (LACAN, 1975-1976/2007). O Real é o impossível de ser totalmente apreendido e, por isso, ele "não cessa de não se escrever".
Nessa perspectiva, a compreensão humana, que opera principalmente no Imaginário e no Simbólico, está intrinsecamente limitada diante do Real. O Real irrompe no psiquismo como o que não faz sentido, como o que perturba a cadeia significante, manifestando-se em sintomas, atos falhos ou na angústia. Por exemplo, uma experiência traumática (Real) pode ser tão avassaladora que se torna inassimilável pela linguagem, resistindo à compreensão e à simbolização completa.
A Tensão Dialética entre Compreensão e o Real
A relação entre compreensão e o real é, portanto, uma tensão dialética. Nossas estruturas de compreensão (sejam elas cognitivas, linguísticas, sociais ou psíquicas) moldam a forma como percebemos e interpretamos o real. O real que experienciamos já é, de alguma forma, um real-compreendido, um real-significado.
No entanto, o real (em sua dimensão bruta, indomável ou traumática) pode romper com nossas categorias de compreensão, desafiando nossos esquemas mentais, nossas certezas e até mesmo nossa linguagem. Esses momentos de "ruptura do real" (seja um evento catastrófico, um encontro com o inesperado ou a irrupção do inconsciente) forçam-nos a reavaliar nossos modos de compreensão, a expandir nossos horizontes ou a confrontar os limites do que pode ser apreendido.
A compreensão, nesse sentido, não é uma absorção passiva do real, mas um processo ativo e contínuo de construção de sentido, sempre confrontado com a possibilidade de um real que o excede, que o fragmenta ou que simplesmente resiste a ser totalmente enquadrado.
Conclusão
Em última análise, a compreensão é o modo intrínseco pelo qual o ser humano se relaciona com o mundo e consigo mesmo. Seja através das lentes filosóficas que veem o real como construído ou interpretado, ou da perspectiva psicanalítica que postula um Real inacessível e traumático, é evidente que nossa apreensão da realidade é sempre mediada. A tensão entre a capacidade de compreender e a existência de um real que a desafia é o que impulsiona a reflexão, a busca por novos saberes e a própria experiência de ser no mundo. Essa relação complexa nos lembra que a verdade e o sentido não são dados, mas construídos e constantemente negociados em nossa incessante interação com o que se apresenta a nós como "o real".
Referências Bibliográficas
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2004. (Obra original publicada em 1960).
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2012. (Obra original publicada em 1927).
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 2001. (Coleção Os Pensadores). (Obra original publicada em 1781).
LACAN, Jacques. O Estádio do Espelho como formador da função do Eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. In: LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998a. p. 96-103. (Texto original de 1949).
LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998b. p. 231-264. (Texto original de 1957).
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 23: O Sinthoma, 1975-1976. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sergio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
A complexa teia da existência humana é intrinsecamente moldada pela nossa capacidade de compreender o mundo e a nós mesmos. Contudo, essa compreensão está em constante diálogo, e por vezes em tensão, com aquilo que denominamos o real. A relação entre esses dois conceitos tem sido objeto de profunda reflexão na filosofia, na psicanálise e em outras áreas do saber, revelando que o "real" não é uma entidade monolítica e acessível de forma direta, e que a compreensão é um processo dinâmico, influenciado por múltiplas camadas da experiência subjetiva.
O Real como Objeto da Compreensão: Perspectivas Filosóficas
Na filosofia, a questão da compreensão e do real remonta aos primórdios do pensamento ocidental. Historicamente, diversas correntes buscaram determinar como o sujeito cognoscente (aquele que compreende) se relaciona com o objeto de conhecimento (o real).
- Perspectiva Fenomenológica: Para pensadores como Edmund Husserl e Martin Heidegger, a compreensão não é um mero ato intelectual, mas uma forma fundamental de estar-no-mundo. Heidegger (1927/2012), em Ser e Tempo, argumenta que o Dasein (ser-aí, o ser humano) já é sempre um ser-compreendente. A realidade, ou o mundo, é sempre experienciada e interpretada por nós, e nunca como uma entidade totalmente separada ou puramente objetiva. A compreensão, portanto, não é sobre apreender um real pré-dado, mas sobre a própria constituição do sentido em nossa vivência. O real é o mundo que se revela à nossa consciência intencional.
- Perspectiva Epistemológica e Construtivista: Immanuel Kant (1781/2001), em sua Crítica da Razão Pura, já apontava para o fato de que não acessamos as "coisas-em-si" (númeno), mas apenas as "coisas-para-nós" (fenômeno). Nossa compreensão do real é mediada pelas categorias inatas da nossa mente (espaço, tempo, causalidade, etc.). Assim, o real que compreendemos já é, em certa medida, construído por nossas faculdades cognitivas. Essa perspectiva lança as bases para o construtivismo, que argumenta que a realidade que conhecemos é sempre uma construção social e subjetiva, e a compreensão é o processo ativo de elaborar essa construção.
- Perspectiva Hermenêutica: A hermenêutica, especialmente na obra de Hans-Georg Gadamer (1960/2004), enfatiza a compreensão como um ato de interpretação. Não abordamos o real de forma neutra, mas com uma "pré-compreensão" (horizontes de sentido, preconceitos no sentido de pré-juízos) que é moldada pela nossa história e cultura. O real, nesse viés, é o que se desvela na circularidade da interpretação, num diálogo contínuo entre o sujeito e o mundo. A compreensão, portanto, é sempre uma fusão de horizontes, onde o real é aquilo que é compreendido dentro de um determinado contexto interpretativo.
O Real Lacaniano: Para Além da Compreensão Simbólica e Imaginária
Na psicanálise de Jacques Lacan, o conceito de Real adquire uma dimensão particular e crucial, que se distingue da realidade objetiva do senso comum. Para Lacan, o aparelho psíquico se estrutura em três ordens interligadas: o Imaginário, o Simbólico e o Real.
- O Imaginário: É a ordem da imagem, da semelhança, da identificação e da ilusão de completude. O "eu" (moi) se constitui no estágio do espelho a partir de uma imagem unificada que o sujeito apreende de si ou do outro semelhante (LACAN, 1949/1998a). Nessa ordem, o real é percebido e representado através de imagens e projeções.
- O Simbólico: É a ordem da linguagem, da lei, da cultura, do Grande Outro. É através do Simbólico que o sujeito se insere no mundo da fala, dos nomes, das interdições e das significações. Grande parte da nossa compreensão do mundo e de nós mesmos opera no registro simbólico, mediada por palavras e conceitos (LACAN, 1957/1998b).
- O Real: É a ordem do que resiste à simbolização e à imaginação. É aquilo que não pode ser nomeado, representado ou totalmente compreendido pelas palavras ou pelas imagens. É o trauma em sua brutalidade, a angústia pura, a dimensão da existência que escapa à captura da linguagem e da fantasia (LACAN, 1975-1976/2007). O Real é o impossível de ser totalmente apreendido e, por isso, ele "não cessa de não se escrever".
Nessa perspectiva, a compreensão humana, que opera principalmente no Imaginário e no Simbólico, está intrinsecamente limitada diante do Real. O Real irrompe no psiquismo como o que não faz sentido, como o que perturba a cadeia significante, manifestando-se em sintomas, atos falhos ou na angústia. Por exemplo, uma experiência traumática (Real) pode ser tão avassaladora que se torna inassimilável pela linguagem, resistindo à compreensão e à simbolização completa.
A Tensão Dialética entre Compreensão e o Real
A relação entre compreensão e o real é, portanto, uma tensão dialética. Nossas estruturas de compreensão (sejam elas cognitivas, linguísticas, sociais ou psíquicas) moldam a forma como percebemos e interpretamos o real. O real que experienciamos já é, de alguma forma, um real-compreendido, um real-significado.
No entanto, o real (em sua dimensão bruta, indomável ou traumática) pode romper com nossas categorias de compreensão, desafiando nossos esquemas mentais, nossas certezas e até mesmo nossa linguagem. Esses momentos de "ruptura do real" (seja um evento catastrófico, um encontro com o inesperado ou a irrupção do inconsciente) forçam-nos a reavaliar nossos modos de compreensão, a expandir nossos horizontes ou a confrontar os limites do que pode ser apreendido.
A compreensão, nesse sentido, não é uma absorção passiva do real, mas um processo ativo e contínuo de construção de sentido, sempre confrontado com a possibilidade de um real que o excede, que o fragmenta ou que simplesmente resiste a ser totalmente enquadrado.
Conclusão
Em última análise, a compreensão é o modo intrínseco pelo qual o ser humano se relaciona com o mundo e consigo mesmo. Seja através das lentes filosóficas que veem o real como construído ou interpretado, ou da perspectiva psicanalítica que postula um Real inacessível e traumático, é evidente que nossa apreensão da realidade é sempre mediada. A tensão entre a capacidade de compreender e a existência de um real que a desafia é o que impulsiona a reflexão, a busca por novos saberes e a própria experiência de ser no mundo. Essa relação complexa nos lembra que a verdade e o sentido não são dados, mas construídos e constantemente negociados em nossa incessante interação com o que se apresenta a nós como "o real".
Referências Bibliográficas
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2004. (Obra original publicada em 1960).
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2012. (Obra original publicada em 1927).
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 2001. (Coleção Os Pensadores). (Obra original publicada em 1781).
LACAN, Jacques. O Estádio do Espelho como formador da função do Eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. In: LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998a. p. 96-103. (Texto original de 1949).
LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998b. p. 231-264. (Texto original de 1957).
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 23: O Sinthoma, 1975-1976. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sergio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.