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Relação Compreensiva e a Relação com o Real

  • A imagem é uma forma de expressão humana cuja percepção e interpretação está para além dos sentidos. Ela constitui também uma forma de olhar sobre o sujeito, o mundo e o “real”, olhar este que é variável ao longo do tempo, espaço, sociedade, contexto etc., para citar alguns elementos. Além disso, a imagem é ainda marcada pelo olhar do sujeito que a observa e a contempla, pois esse mesmo olhar é produtor de sentidos sobre ela e sobre o “real” que ela representa. A esse respeito, a caracterização da imagem ao longo do tempo, por meio dos três paradigmas da fotografia – pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico – nos permite refletir sobre como as relações entre o sujeito e a imagem foram se estabelecendo. Para essa reflexão, é fundamental evocar o campo da Psicanálise e os três registros que elabora, os quais são apresentados no Capítulo.
  • Nesta Unidade de Aprendizagem, você vai conhecer um pouco sobre o imaginário, o simbólico e o real, que são os três registros da Psicanálise, refletir sobre a relação entre os paradigmas da fotografia e os três registros, compreender a interpretação da imagem como um processo contextual, cuja relação com o “real” é variável conforme o social e o cultural, por exemplo.
  • Paradigma pré-fotográfico: está para o registro do imaginário (da relação especular eu-outro). A relação da imagem pré fotográfica com o imaginário é idílica e conflituosa.
  • Paradigma fotográfico: está para ao registro do real (do impossível). Esse modelo surge do “encontro conflituoso” entre o imaginário e o real. Há na fotografia e os que a ela se seguem um corte, um recorte, pois apenas um único fragmento no tempo-espaço é capturado.
  • Paradigma pós fotográfico: está para o registro do simbólico (da linguagem, estrutura, lei e cultura). São as imagens computacionais, as quais exigem um cálculo aritmético para criar a imagem. As dimensões do tempo e espaço foram diluídas, assim como não é amis necessária a presença do olhar do espectador e do objeto que será representado.
  • O debate sobre a relação entre imagem e realidade é antigo. Contudo, o uso excessivo das imagens pelas redes sociais tem trazido novamente à tona discussões em torno dessa relação. Ora, o real não está no já-dado. Embora alguns campos o tomem como para além do indivíduo, constitutivo da ordem material do mundo, o real é uma construção social. Essa é uma forma de pensar o real e a imagem, isto é, a partir de uma concepção social, cuja realidade é representada pela imagem.Se, nesse ponto de vista, a imagem é uma das muitas formas para expressar os pensamentos e, assim, construir a nossa relação com os outros, há, portanto, muitas formas de ver, caracterizar e representar essa relação. Desse modo, o ato de ver, de mirar, e o já visto, é processual e relacional e pode ser compreendido de forma distinta de um sujeito para o outro.
  • Para compreender a noção do real – e suas articulações com as noções de imaginário e simbólico – é importante fazer referência, primeiramente, ao campo da psicanálise, o qual influenciou a caracterização de paradigmas sobre a imagem. É importante você saber, de antemão, que Jacques Marie Émile Lacan (1901–1981) foi um psiquiatra e psicanalista francês que trouxe contribuições significativas para a psicanálise. Além das numerosas reflexões que trouxe para temas de âmbito comum, como o amor e a política, Lacan reforçou a necessidade de retornar ao fundador desse campo, isto é, ao neurologista e psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856–1939), preconizando a importância da (re)leitura da sua obra. Aliás, foi a partir do legado freudiano que o francês elaborou os seguintes registros: imaginário, simbólico e real.
  • Segundo Roudinesco e Plon (1998a, 1998b, 1998c), a palavra imaginário deriva do termo latino imago. Ela é comumente empregada nos campos da filosofia e da psicologia em referência à imaginação, isto é, “[...] à faculdade de representar coisas em pensamento, independentemente da realidade. ” Relação compreensiva. Relação com o real 3 (ROUDINESCO; PLON, 1998a, p. 371). Já a expressão simbólico vem da antropologia, a qual atribui um valor e uma função simbólica aos elementos da cultura. Destacam-se nesse campo de estudo os trabalhos do sociólogo francês Marcel Mauss (1872–1950) e do antropólogo francês Claude LéviStrauss (1908–2009). Este último, inclusive, desenvolve noções trazidas por aquele, como a de função simbólica. Faz isso a partir da articulação com o estruturalismo trazido pela contribuição da linguística, em especial pela obra do linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857–1913). Ainda, o termo real surge do vocabulário da filosofia.
  • Embora seja bem difícil sintetizar essas três noções e as relações estabelecidas entre elas sem comprometer a complexidade e a densidade dessa elaboração teórica – elaboração esta que apresenta diferentes “fases” ou desenvolvimentos –, você pode considerar, de forma bem geral, o seguinte: o imaginário, que passou a ser usado por Lacan a partir de 1936, diz respeito a uma relação dual com a imagem do semelhante. Essa noção está relacionada ao estádio do espelho (como você vai ver mais adiante), que é uma reflexão importantíssima para a psicanálise no tocante à construção do eu, da relação entre o eu e o outro e da imagem e (in)completude dos homens. Empregado em associação com as categorias do real e do simbólico, a partir do ano de 1953, o imaginário passa a ser definido, na reflexão trazida por Lacan, “[...] como o lugar do eu por excelência [...]”, o espaço dos “[...] fenômenos de e ilusão, captação e engodo [...]” (ROUDINESCO; PLON, 1998a, p. 371).
  • Conforme Roudinesco e Plon (1998c), também a partir de 1936, Lacan faz uso do termo simbólico para se referir a um sistema de representação que se baseia na linguagem. A partir de 1953, essa noção torna-se inseparável das do imaginário e do real, constituindo uma estrutura. Na categoria do simbólico, Lacan fez uso da teorização de Lévi-Strauss. Desse modo, o inconsciente elaborado por Freud passa a ser retomado como o “[...] lugar de uma mediação comparável à do significante no registro da língua [...]” (ROUDINESCO; PLON, 1998c, p. 714-715).
  • Quanto ao termo real, este passou a ser introduzido a partir de 1953, sendo comumente associado ao que é impossível de ser simbolizado e representado. É importante não confundir o real da psicanálise com a noção de uso comum de realidade. Para a elaboração dessa categoria, Lacan recorreu tanto ao campo da filosofia como ao conceito de Freud de realidade psíquica (ROUDINESCO; PLON, 1998b). Ainda se valeu das reflexões elaboradas 4 Relação compreensiva. Relação com o real pelo cientista social francês-polonês Émile Meyerson (1859–1933) sobre a ciência do real e das considerações do pensador francês Georges Bataille (1897–1962) sobre a ciência do irrecuperável (heterologia). Essas três conceituações foram fundamentais para a elaboração do real por Lacan, noção esta que é associada a um “resto” que escapa ao discurso (matema) e que é impossível de ser transmitido (ROUDINESCO; PLON, 1998b).
  • A propósito, a primeira “teoria” do imaginário de Lacan sofreu influência dos trabalhos do filósofo e psicólogo francês Henri Wallon (1879–1962), do filósofo e matemático inglês Bertrand Russel (1872–1970), do biólogo alemão Jakob von Uexküll (1864–1944), entre outros. Em 1938, o psicanalista constrói o imaginário não mais como um fato psíquico “simples”, mas como uma imago, ou seja, como um “[...] conjunto de representações inconscientes [...]” (ROUDINESCO; PLON, 1998a, p. 371). Em 1953, Lacan define essa noção como uma espécie de engano que se relaciona à experiência de uma clivagem do sujeito, da alienação e das “[...] ilusões do eu [...]” (ROUDINESCO; PLON, 1998a, p. 371). Nesse momento, o simbólico surge como o espaço do significante, e o real como o impossível, que não pode ser simbolizado (ROUDINESCO; PLON, 1998a).
  • „ Paradigma pré-fotográfico: abarca as imagens artesanais, tais como o desenho, a pintura e a gravura. „ Paradigma fotográfico: refere-se às imagens que têm uma relação dinâmica com o objeto que retomam, trazendo de alguma forma um rastro ou uma pista do objeto indicado. „ Paradigma pós-fotográfico: engloba as imagens sintéticas ou infográficas, as quais são realizadas por meio da computação.
  • Conforme Santaella e Nöth (1998), há quatro níveis de que depende o processo de signos/linguagem. São eles: (1) meios de produção, (2) meios de conservação, (3) meios de exposição e difusão e (4) meios de recepção. No caso da linguagem imagística, esses níveis se referem à percepção, à contemplação, à observação e à fruição, respectivamente. Pensar sobre Relação compreensiva. Relação com o real 5 esses “níveis” é importante porque, ao observar como eles se manifestam em cada paradigma apontado, você pode compreender as mudanças que foram ocorrendo de um paradigma a outro até se chegar a uma ruptura e, assim, ao surgimento do paradigma subsequente. Dentro desse panorama, esses autores apontam que há semelhanças entre os três registros psicanalíticos e os três paradigmas da imagem. Observe: „ Pré-fotográfico: está para o imaginário. „ Fotográfico: está para o real. „ Pós-fotográfico: está para o simbólico.
  • É importante você saber, de antemão, que deve ter cuidado ao se referir a distintos campos de estudo, como o da psicanálise, o qual trata de um sujeito de outra ordem, que é a do inconsciente, do desejo. No processo de retomadas teóricas, o estudioso/pesquisador pode “escorregar” na tendência à “pasteurização” ou homogeneização de diferentes perspectivas teóricas em torno da tentativa de se definir um objeto teórico específico (CORDEIRO, 2017).
  • Nos estudos empreendidos sobre o signo, Peirce (2005 apud MELO; MELO, 2014) propôs a classificação de todo fenômeno – entendido como qualquer coisa que surge na mente – a partir de três categorias, chamadas de primeiridade, secundidade e terceiridade. Essas noções referem-se ainda a três fases do processo de percepção de qualquer signo. De maneira geral, elas se caracterizam como (MELO; MELO, 2014): „ Na primeira, ou primeiridade, destaca-se o sentir, isto é, o sentimento. Como percepção primeira, o signo é percebido por elementos referentes à qualidade. Esses elementos suscitam uma sensação ou um sentimento, tais como cor, forma, volume, textura, som, etc. (é o quali-signo, o qual faz parte do input visual). O universo dessa categoria é o do sonho, o da imaginação (GHIZZI, 2009 apud MELO; MELO, 2014) e o de quando você experiencia algo pela primeira vez, como um cheiro ou um sabor. „ Na segunda, ou secundidade, destaca-se o reagir, isto é, a reação. Como percepção secundária, o signo é decomposto em relações/associações e é notado como “mensagem” (é o sin-signo, o qual faz parte do insight representacional). Essa categoria se dá no conflito entre a consciência e o signo que busca ser entendido, como quando você percebe uma qualidade de alguma coisa como propriedade de um signo. „ Na terceira, ou terceiridade, destaca-se o pensar, isto é, o pensamento. Como percepção última, o signo é compreendido num contexto geral de significações (é o legi-signo, o qual faz parte do output comunicacional). Nessa categoria se dá o próprio processo de mediação entre a primeiridade e a secundidade; e ainda o de representação e interpretação do mundo.
  • A respeito do real, Santaella e Nöth (1998) retomam que ele, sendo o impossível, o impossível de ser simbolizado, ou seja, o que não é possível de ser capturado pelo simbólico, está para o paradigma fotográfico. Ora, entre o objeto e a sua imagem, há a falta. Dito de outro modo, não há uma adequação entre as partes do seu corpo e a “matriz imaginária” que você pode ter dele. Assim, como se articula o mundo do imaginário com o mundo do real em cada um? O paradigma fotográfico se deu nesse choque entre o imaginário e o real. Foi nesse encontro conflituoso que a fotografia e os seguintes desdobramentos surgiram. Há nesses gêneros um corte, um recorte, um fragmento apenas que é capturado no tempo-espaço. Com o modelo fotográfico, a utopia da completude entre o mundo e a imagem cai por terra. Sobre essa relação, veja o enunciado de Santaella (1996, p. 180 apud SANTAELLA; NÖTH, 1998, p. 192): Quanto mais um aparelho ou máquina se aperfeiçoa no registro mimético dos objetos e situações, mais evidente se torna sua impossibilidade de ser igual àquilo que registra. Há um descompasso entre o ritmo do mundo, matéria vertente do vivido, e a capacidade do registro. A febre da vida não cabe em imagens. Sob as vestes da imagem, algo cai. Esse algo é o real, que insiste na sua irredutibilidade.
  • Ora, a imagem é, como você sabe, experimentada por meio dos sentidos. No entanto, alguns a percebem como parte constitutiva que é socialmente representada pelas pessoas a respeito do mundo; outros, como o próprio mundo, como se este existisse, já de antemão, “pronto” para ser observado.
  • É importante que você pense de forma “mais concreta” essa relação entre a imagem e o suposto real, dentro de uma concepção social da realidade. Isto é, você deve considerar a realidade como um processo em construção pelos sujeitos – e não como algo já dado, como geralmente é tomada pelas ciências naturais, embora esse movimento tenha se modificado ao longo dos anos. Isso leva à reflexão levantada por Mota-Ribeiro e Coelho (2011) sobre a modalidade da imagem. Segundo esses autores, a modalidade da imagem é um aspecto da dimensão interacional, o qual se relaciona com a credibilidade das imagens, no sentido de como a mensagem é construída. Baseando-se em Kress e van Leeuwen (2006 apud MOTA-RIBEIRO; COELHO, 2011), os marcadores visuais das imagens permitem que elas sejam interpretadas como mais ou menos reais, ou seja, como mais ou menos “credíveis”. É interessante você notar que, na perspectiva desses autores, uma modalidade elevada remete para o real e uma baixa, para a possibilidade. No entanto, isso não diz 1 1 Relação compreensiva. Relação com o real respeito necessariamente ao fato de a cena ser representada de forma fantasiosa, pois uma imagem com fantasmas, por exemplo, pode ter uma modalidade elevada caso seja representada como “real”. Para isso, o autor/produtor da imagem deve usar elementos visuais que possam atribuir credibilidade a ela.
  • A credibilidade faz parte de uma construção social, coletiva. Dito de outro modo, os elementos usados para construir uma mensagem visual como real podem ser interpretados de forma diferente por outro grupo social. Assim, enquanto um confere uma modalidade alta àquela mensagem, outros podem atribuir uma baixa. Nesse sentido, “[...] a credibilidade varia de sociedade para sociedade, uma vez que é culturalmente marcada [...]” (KRESS; VAN LEEUWEN, 1996 apud MOTA-RIBEIRO; COELHO, 2011). Além disso, dentro de uma mesma cultura, o próprio padrão de credibilidade pode variar. Essa variação também é histórica, pois se dá ao longo do tempo. Logo, é importante você ter como ponto de partida essa reflexão sobre a relação entre a imagem e o real como uma dinâmica de representação, e não como uma correspondência objetiva.